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poetaporkedeusker

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UM BLOG SOBRE SONETO CLÁSSICO

Da autoria de Maria João Brito de Sousa, sócia nº 88 da Associação Portuguesa de Poetas, Membro Efectivo da Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores - AVSPE -, Membro da Academia Virtual de Letras (AVL) , autora no Portal CEN, e membro da Associação Desenhando Sonhos, escrito num portátil gentilmente oferecido pelos seus leitores. ...porque os poemas nascem, alimentam-se, crescem, reproduzem-se e (por vezes...) não morrem.
17
Jan09

A CARTA MANUSCRITA

Maria João Brito de Sousa

Levantou-se e espreguiçou-se tão demoradamente quanto os latidos do cão lho permitiram. Não teve tempo de passar pelo W.C. Não teve tempo para mais nada. Abriu a porta, segurou o molho de chaves e desceu com o animal que mostrava, agora, a sua impaciência através de estridentes e consecutivos ganidos.

A porta da rua parecia mais pesada do que nunca. Teve de empregar toda a sua força para conseguir abri-la e ficou a olhar o pequeno animal que, entretanto, saíra em disparada.

Faltavam os outros todos, pensou. As manhãs sucediam-se-lhe num ritmo constante mas alucinado… demasiado para os estragos que o tempo conseguira já provocar no seu corpo, admitiu. Ao longe o cão perdera-se entre os buxos que revestiam os canteiros das palmeiras.

Lentamente, como quem levanta o peso insuportável de uma mão que vai em busca da última e inevitável conta, abriu a caixa de correio. Nada de contas, desta vez. Pequeno, ocupando metade do espaço habitual e bem conhecido das cartas do gás e da electricidade, estava um envelope encerrado na mudez intrigante das coisas inesperadas. A mão aventurou-se-lhe ao toque, trouxe-lho até diante dos olhos. Nenhuma marca impressa, nenhum selo, nenhum carimbo dos CTT. Apenas o seu nome escrito numa caligrafia que lhe era perfeitamente alheia.

Baixou sobre o nariz os óculos que trazia sobre a cabeça, segurando a rebeldia dos cabelos soltos, e abriu a missiva com um gesto brusco de profunda curiosidade. Uma folha

apenas. Sobre o azul suave do papel, escritas a tinta preta, em letras bem legíveis, estavam as seguintes palavras;

MUDANÇA, s. f.

acto ou efeito de mudar. Passagem ou transporte de um lugar para outro; “mudança de residência”. Variação, inconstância; “a mudança do tempo”.

 

Era tudo. Nem assinatura, nem remetente.

Sorriu e deixou que os olhos se lhe perdessem, de novo, nos traços negros sobre o azuláceo do papel. Ali ficou,

perdida em reflexões, até o cachorro voltar, manco como sempre.  Sabia que jamais descobriria a origem daquela carta. Não sabia porquê, mas sabia.

 Subiram os dois os quatro pisos que levavam à casa de sempre, onde ambos encontrariam os eternos amigos dos quais só a morte os poderia separar e ela dirigiu-se, finalmente, ao W.C. Olhou-se no pequeno espelho sobre o lavatório e viu-se mudada, como todas as coisas. Mais uns cabelos brancos, o despontar de dois vincos que desciam do nariz ao queixo. Mudava. Sem dúvida mudava. Com excepção do espírito que se lhe mantinha constante na eterna busca por um mundo melhor.

A carta azul ficara pousada sobre a estante do hall de entrada onde os livros se eternizavam à espera de uma releitura.

O eterno caderno repousava, ainda aberto, sobre a cama revolta que, como sempre, partilhara com os gatos.

As mãos reocuparam-se-lhe na escrita de mais um poema.

Só na constância se pode mudar. A construção é sempre uma soma de constâncias… a própria mudança é apenas fruto de uma imensa e fluente constância, pensou. E sorriu enquanto as mãos se lhe continuavam a mover sobre o papel.

 

 

 

 

Imagem retirada da internet

 

Texto semi-ficcionado para a http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/

 

 

 

 

 

 

6 comentários

  • Linda a tua mensagem, amiga! Desculpa o atraso na resposta, mas hoje foi um dia duro. Morreu uma senhora de idade que morava no meu prédio e de quem sempre gostei muito. Fui ao velório, mas penso que não estarei em grandes condições de ir amanhã ao funeral. Era uma senhora que sorria muito, sempre alegre apesar do cancro que a ia corroendo. Quero lembrá-la sempre como "a senhora dos sorrisos."
    Abraço grande.
  • Imagem de perfil

    blogando-me1 17.01.2009

    Sinto muito a sua perda. Vamos aos poucos ganhando carinho pelos vizinhos e quando menos esperamos, eles partem. Um beijinho com carinho.

    Bjs fofos
  • Nunca fui muito de dar-me com os vizinhos, Carla. Muitas pessoas deste prédio não olham com bons olhos uma mulher sozinha com tanto animal em casa, mas esta senhora era tão diferente da maioria... estava sempre a sorrir e era de uma simpatia contagiante.
    Beijinho e obrigada.
  • Imagem de perfil

    blogando-me1 18.01.2009

    Bem pelo menos ficou com a recordação dessa senhora sempre a sorrir.
    No prédio onde moro, sou a vizinha mais nova, quando comprei o ap, o meu filho tinha 1 ano. As vizinhas de baixo são duas senhoras idosas e o menino habitou-se a chamar-lhes avós, hoje tem quase 11 anos e continua e muitas vezes me pergunta, quando as avós morrerem como vai ser???? Pergunta a que não tenho resposta.
    Um bom domingo para si e tudo de bom.

    Bjs fofos
  • É verdade, amiga. Há idosos que são um encanto de pessoas! Que se afeiçam a nós e nos cativam com a sua simplicidade e alegria.
    Beijinhos!
  • Comentar:

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