A CARTA MANUSCRITA
Levantou-se e espreguiçou-se tão demoradamente quanto os latidos do cão lho permitiram. Não teve tempo de passar pelo W.C. Não teve tempo para mais nada. Abriu a porta, segurou o molho de chaves e desceu com o animal que mostrava, agora, a sua impaciência através de estridentes e consecutivos ganidos.
A porta da rua parecia mais pesada do que nunca. Teve de empregar toda a sua força para conseguir abri-la e ficou a olhar o pequeno animal que, entretanto, saíra em disparada.
Faltavam os outros todos, pensou. As manhãs sucediam-se-lhe num ritmo constante mas alucinado… demasiado para os estragos que o tempo conseguira já provocar no seu corpo, admitiu. Ao longe o cão perdera-se entre os buxos que revestiam os canteiros das palmeiras.
Lentamente, como quem levanta o peso insuportável de uma mão que vai em busca da última e inevitável conta, abriu a caixa de correio. Nada de contas, desta vez. Pequeno, ocupando metade do espaço habitual e bem conhecido das cartas do gás e da electricidade, estava um envelope encerrado na mudez intrigante das coisas inesperadas. A mão aventurou-se-lhe ao toque, trouxe-lho até diante dos olhos. Nenhuma marca impressa, nenhum selo, nenhum carimbo dos CTT. Apenas o seu nome escrito numa caligrafia que lhe era perfeitamente alheia.
Baixou sobre o nariz os óculos que trazia sobre a cabeça, segurando a rebeldia dos cabelos soltos, e abriu a missiva com um gesto brusco de profunda curiosidade. Uma folha
apenas. Sobre o azul suave do papel, escritas a tinta preta, em letras bem legíveis, estavam as seguintes palavras;
MUDANÇA, s. f.
acto ou efeito de mudar. Passagem ou transporte de um lugar para outro; “mudança de residência”. Variação, inconstância; “a mudança do tempo”.
Era tudo. Nem assinatura, nem remetente.
Sorriu e deixou que os olhos se lhe perdessem, de novo, nos traços negros sobre o azuláceo do papel. Ali ficou,
perdida em reflexões, até o cachorro voltar, manco como sempre. Sabia que jamais descobriria a origem daquela carta. Não sabia porquê, mas sabia.
Subiram os dois os quatro pisos que levavam à casa de sempre, onde ambos encontrariam os eternos amigos dos quais só a morte os poderia separar e ela dirigiu-se, finalmente, ao W.C. Olhou-se no pequeno espelho sobre o lavatório e viu-se mudada, como todas as coisas. Mais uns cabelos brancos, o despontar de dois vincos que desciam do nariz ao queixo. Mudava. Sem dúvida mudava. Com excepção do espírito que se lhe mantinha constante na eterna busca por um mundo melhor.
A carta azul ficara pousada sobre a estante do hall de entrada onde os livros se eternizavam à espera de uma releitura.
O eterno caderno repousava, ainda aberto, sobre a cama revolta que, como sempre, partilhara com os gatos.
As mãos reocuparam-se-lhe na escrita de mais um poema.
Só na constância se pode mudar. A construção é sempre uma soma de constâncias… a própria mudança é apenas fruto de uma imensa e fluente constância, pensou. E sorriu enquanto as mãos se lhe continuavam a mover sobre o papel.
Imagem retirada da internet
Texto semi-ficcionado para a http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/