Da autoria de Maria João Brito de Sousa, sócia nº 88 da Associação Portuguesa de Poetas, Membro Efectivo da Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores - AVSPE -, Membro da Academia Virtual de Letras (AVL) , autora no Portal CEN, e membro da Associação Desenhando Sonhos, escrito num portátil gentilmente oferecido pelos seus leitores.
...porque os poemas nascem, alimentam-se, crescem, reproduzem-se e (por vezes...) não morrem.
Não. Não é o espaço que a fotografia deixa vislumbrar... ali nascem muitos dos meus poemas, mas só aqui, neste outro espaço, eles são preparados para navegar na blogosfera, para chegarem até à Fábrica, até vós...
Este outro espaço é rectangular, claro e muito mais espaçoso...
À minha frente há um computador, é evidente, ou não estaria assim, tão "em directo" convosco. Um computador e uma longa mesa dividida que se prolonga em direcção à minha esquerda até perfazer mais dois nichos de trabalho, cada um com o seu equipamento informático. Imediatamente a seguir vem um biombo verde garrafa onde foram colados alguns cartazes. O último deles é do Glue, dos Da Weasel. Leio com atenção o que está escrito sob a sua imagem: A VIOLÊNCIA É UM CICLO.
TU PODES QUEBRÁ-LO.
sigo além da mensagem e o meu olhar encontra um estante cor-de-laranja onde está a nascer uma nova biblioteca. Sorrio-lhe com todo o carinho que dedico às coisas novas e bem-vindas e continuo a passear o olhar pela enorme janela que fornece luz natural a todo o espaço, até encontrar a secretária do funcionário que controla o desempenho dos equipamentos. Sorrio novamente. Nunca tive problemas com estes aparelhos mas acontece, por vezes, um cursor ficar imobilizado ou haver alguém que tenha dificuldade em aceder a determinado site.É nesse momento que o "controlador" vem ajudar para que o trabalho não fique parado num impasse.
Deixo que o olhar continue e encontro uma outra mesa corrida, folheada a madeira, perfeitamente idêntica àquela em que me encontro, tanto no número de computadores que disponibiliza, quer em cor e funcionalidade... uma diferença, no entanto, leva a que os meus dedos repercutam um pouco mais sobre as teclas negras que utilizo para vos contar do espaço em que trabalho. Uma parede em mosaico pequeno, semelhante à comum tijoleira, mas num verde claro acinzentado, serve de fundo a essa irmã gémea da mesa que estou a utilizar como suporte.
O soalho é de madeira e, hoje, cheira a escola, aqui, no espaço onde trabalho. Não sei se é este Outubro brilhante que remete para esses tempos remotos a minha memória olfactiva... talvez seja a disposição dos equipamentos, a claridade da sala... a porta com o vidro redondo que a minha escola nunca teve, não será, com certeza...
Olho, agora, para o centro do espaço rectangular e descubro a mesa de fórmica branca, rodeada de cadeiras forradas de tecido verde-pastel, numa tonalidade acima da tijoleira da parede lateral. Por vezes, um ou outro acompanhante vem sentar-se nela para ler um pouco. Não há grandes ruídos. Respeita-se, muito naturalmente, o trabalho dos "vizinhos" e apenas a música de fundo quebra suavemente a cadência do bater das teclas.
Esquece-se, neste espaço onde trabalho, a coordenada tempo. Esquece-se ou confunde-se, não sei bem... nunca me sei se velha ou menina enquanto trabalho. Sinto-me oscilar entre esses dois extremos conforme a nova coordenada que vai nascendo dos nossos dedos... essa que se não mede em metros nem em horas ou anos e que nos leva infinitamente além de tudo isso. A comunicação.
NOTA - Queiram ter a bondade de descer as "escadinhas", depois de visitarem a Fábrica de Histórias, e ver o Prémio que está à vossa espera no http://premiosemedalhas.blogs.sapo.pt/
Saiu da agência de viagens arrumando, na malinha a tiracolo, a papelada que escrevera nos intervalos dos telefonemas dos muitos turistas que pediam o apoio da sua “hostess” depois do check-in no hotel. Eram quatro e meia de uma tarde de Verão e as palavras do chefe do Foreign Department soavam-lhe, ainda, aos ouvidos:
- Maria João, gostaríamos de tê-la no nosso próximo Grupo da Getaway Adventures, desde Espanha, acompanhando o grupo desde lá.
Não respondera logo. Esboçara um sorrisinho “polite” e murmurara meia dúzia de palavras que não queriam dizer coisa nenhuma. Aquele momento seria supostamente especial. Era-o. Não da forma que seria para as suas colegas que viviam e trabalhavam de olhos postos na primeira viagem. Na inesquecível primeira viagem.
Para ela era muito diferente. A palavra fazia-lhe despontar raízes por dentro e por fora. Não era medo. Não era falta de ambição. Era uma ausência de medos e um desvio real das ambições… as dela ficavam-se mais por ali, pelas escadinhas da estação do Rossio onde os alfarrabistas de rua espalhavam os exemplares semi-novos e muito antigos onde, inevitavelmente, ficava a viajar durante horas. Colega que a acompanhasse
Acabava por desistir da companhia e rumar sozinha aos Porfírios enquanto ela, esquecida de horas e desoras, se eternizava nas escadinhas, entre páginas de velhos alfarrábios.
Tomava sempre como própria da sua pouca idade aquela excentricidade que tentava dissimular, quantas vezes da forma mais desastrada…
Deixou, em troca de dois exemplares de Nefrologia Clínica, uma boa parte do que ganhara no “transfer” do dia e rumou à estação de comboios, remoendo ainda as palavras do chefe. O raio da viagem estava-se-lhe a tornar incomodativa, colava-se-lhe às páginas do livro, consumia-lhe as letras num rodopio constante que lhe tirava o prazer da leitura… ou da interiorização das palavras que lia. Impedia-a, inclusive, de saborear as cores e os paladares das ideias que se lhe começavam a enredar nos vês, nos iis e nos gês das viagens. Fechou o livro enquanto evitava, com a habilidade de uma longa experiência, um encontrão no senhor que vinha em sentido contrário e que parecia mais interessado nas pedras da calçada do que ela na porcaria da primeira viagem.
Quase, quase a chegar à estação dos comboios perdeu o olhar no céu que escurecia. Parou por instantes e olhou os pombos sedentários que por ali debicavam invisíveis migalhas. Abriu a carteira, retomou o percurso num passo mais decidido e anotou na agenda… “Amanhã – avisar a Benilde de que se vá preparando para tomar o meu lugar na viagem”.
Guardou a agenda enquanto entrava no comboio, pronta para retomar a leitura sobre o diagnóstico precoce das nefropatias.
Era a sua segunda noite de insónia desde os tempos dos céus de chumbo e risos de trovão. Sonhara enquanto acordada, depois… não se lembrava. Eram sonhos bidimensionais, como um ecrã. Entre mil e uma imagens de seres humanos em diferentes estádios do seu crescimento, vira, claramente visto, o título do seu último post: SONETO. Ficou com a ideia de que teria de se levantar para
corrigir o erro. Não fora esse o título que lhe dera. Impunha-se corrigi-lo, mas começava a mergulhar na névoa da semi-consciência que precede o sono.
Havia coisas. Muitas mais coisas. Um conjunto de salas grandes, espaçosas, de tons claros e neutros onde se sentavam mais pessoas. Homens, na sua maioria. Do outro lado ficava a sua sala, ligeiramente transfigurada por planos em diagonal e pelo excesso de figuras humanas que surgiam como peças expostas de uma montra. Curioso. Parou para os tentar visualizar mas surgiu, de novo, o ecrã. SONETO. Era evidentemente necessário mudar aquela palavra. Não fora essa a mensagem que quisera fazer passar. Não nesse dia… e, ainda, a brumazinha confortável do sono a chamá-la….
Todos sorriam. Homens e mulheres. Todos a olhavam com o ar amistoso de quem dá as boas-vindas. Só o erro no título parecia incomodá-la. Incomodava-a. Incomodou-a ao ponto de a fazer imaginar-se de pé, tentando a reedição do post. Não dava. Não deu. Talvez fosse tarde… as outras figuras haviam já feito a leitura e continuavam a sorrir amavelmente em perfeita sintonia.
Tudo era suave ali, naquela antecâmara do sono. Do sono. Não da morte. A morte nada tinha a ver com aquilo. Surgia, quase abrupta, num acentuadíssimo declive e era, inicialmente, muito dolorosa. Fluía, depois, para uma paz que desafiava toda e qualquer imaginação de rédeas soltas, mas era diferente. Fora assim que a experimentara e assim a guardou na memória. Pacificamente. Para mais tarde recordar. Agora urgia corrigir o erro. Não era uma urgência angustiante, de forma nenhuma. Era apenas uma premência do dever por cumprir. Tentava e não conseguia. Foi então que entendeu que cada uma das figuras interpretaria o título à sua maneira, segundo as suas idades, sexo, vivências e património cultural. Parou. Lembrou-se do pátio da sua escola. Teria de fazer mais. Muitos, muitos mais antes de partir.
Sorriu. Fazia todo o sentido sorrir àquilo que antes lhe parecera não ter pés nem cabeça.