SEM PÉS NEM CABEÇA
Na perspectiva histórica do ser,
Humano por nascença e por direito,
Desponta o lado místico e perfeito
Ao alcance das asas por nascer...
E sente e toca e quer compreender,
E sonda e quer saber se tem defeito…
Vem do fundo de si esse seu jeito
De não poder estar vivo sem saber…
Eis o Homem de Luz, esse “Ninguém”,
No invólucro padrão do que o contém,
Partindo à descoberta de quem é
Traz nas mãos o poder de ir mais além
E escolhe com a alma que o mantém
Nas asas, a crescer, da sua fé…
Era a sua segunda noite de insónia desde os tempos dos céus de chumbo e risos de trovão. Sonhara enquanto acordada, depois… não se lembrava. Eram sonhos bidimensionais, como um ecrã. Entre mil e uma imagens de seres humanos em diferentes estádios do seu crescimento, vira, claramente visto, o título do seu último post: SONETO. Ficou com a ideia de que teria de se levantar para
corrigir o erro. Não fora esse o título que lhe dera. Impunha-se corrigi-lo, mas começava a mergulhar na névoa da semi-consciência que precede o sono.
Havia coisas. Muitas mais coisas. Um conjunto de salas grandes, espaçosas, de tons claros e neutros onde se sentavam mais pessoas. Homens, na sua maioria. Do outro lado ficava a sua sala, ligeiramente transfigurada por planos em diagonal e pelo excesso de figuras humanas que surgiam como peças expostas de uma montra. Curioso. Parou para os tentar visualizar mas surgiu, de novo, o ecrã. SONETO. Era evidentemente necessário mudar aquela palavra. Não fora essa a mensagem que quisera fazer passar. Não nesse dia… e, ainda, a brumazinha confortável do sono a chamá-la….
Todos sorriam. Homens e mulheres. Todos a olhavam com o ar amistoso de quem dá as boas-vindas. Só o erro no título parecia incomodá-la. Incomodava-a. Incomodou-a ao ponto de a fazer imaginar-se de pé, tentando a reedição do post. Não dava. Não deu. Talvez fosse tarde… as outras figuras haviam já feito a leitura e continuavam a sorrir amavelmente em perfeita sintonia.
Tudo era suave ali, naquela antecâmara do sono. Do sono. Não da morte. A morte nada tinha a ver com aquilo. Surgia, quase abrupta, num acentuadíssimo declive e era, inicialmente, muito dolorosa. Fluía, depois, para uma paz que desafiava toda e qualquer imaginação de rédeas soltas, mas era diferente. Fora assim que a experimentara e assim a guardou na memória. Pacificamente. Para mais tarde recordar. Agora urgia corrigir o erro. Não era uma urgência angustiante, de forma nenhuma. Era apenas uma premência do dever por cumprir. Tentava e não conseguia. Foi então que entendeu que cada uma das figuras interpretaria o título à sua maneira, segundo as suas idades, sexo, vivências e património cultural. Parou. Lembrou-se do pátio da sua escola. Teria de fazer mais. Muitos, muitos mais antes de partir.
Sorriu. Fazia todo o sentido sorrir àquilo que antes lhe parecera não ter pés nem cabeça.
J
Sonhado para http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/