Maria João Brito de Sousa
Algumas fomes têm data certa;
Uma, aos fins-de-semana e feriados,
Vai-nos deixando a porta entreaberta
Aos tormentos por vir, aos já passados
E aos que nos surgem duma descoberta
Das consequências de passos já dados
Que conduziram, muito embora alerta,
A sermos novamente condenados.
Quem fome sinta, logo o cinto aperta,
Mas outras surgem porque, aos medicados,
Vai faltando o remédio que os liberta
De sofrimento e morte antecipados...
E uma nova fome em nós desperta;
Queremo-los todos comparticipados!
Maria João Brito de Sousa – 31.08.2017 -13.16h
publicado às 16:50
Maria João Brito de Sousa
Nesta paixão maior chamada glosa,
Deixo o melhor de mim; encho-a de amor,
Mesmo sabendo que é tão caprichosa
Que dela nunca sei seja o que for,
Quando a ela me entrego um tanto ansiosa,
Como abelha a voar de flor em flor
Em busca da que entenda mais viçosa
Pr`a garantir-lhe ainda mais vigor.
Glosavam-se os poetas, lá por casa,
E, nas reuniões da Tábua Rasa,
Cheguei a ver a glosa acontecer,
Por isso vos confesso que me abrasa
A glosa, que é espontânea e não desfasa
Daquilo que não sei senão dizer...
Maria João Brito de Sousa – 30.08.2017 – 14.56h
(Reservados os direitos de autor)
publicado às 15:04
Maria João Brito de Sousa
SONHO SOLTO
Sento-me, só, no colo das ideias
Do verso branco que não sei parar…
Sinto o dilatar de todas as veias
Que pulsam em mim, sem me sossegar
Todos os elos, todas as cadeias,
Todas as ondas me vão navegar
E desaguar nas mesmas areias
Do mesmo sol-pôr, do mesmo luar
Cavalgo as marés da tua ternura
Nas dunas de pele que quero sorver…
Saciando a sede na tua candura
O sonho só solto ao anoitecer
No amanhecer da minha loucura
No verso de amor que não vou escrever
João Moutinho
POR ELA
“Sento-me, só, no colo das ideias”,
Enlaço-me nos braços da Razão
E, apagada a chama das candeias,
Confronto a minha humana condição;
“Todos os elos, todas as cadeias”,
Todas as formas de escravização,
São coisas que não sabes, mas premeias,
Não por palavras, mas por omissão.
“Cavalgo as marés da tua ternura”
Quando descanso e sempre que puder,
Mas assim que a Razão sonda e perfura
“O sonho só solto ao anoitecer”,
É por ela que aceito esta ruptura
E, por ela, só dela passo a ser.
Maria João Brito de Sousa – 28.08.2017 – 11.58h
Desenho de Júlio (irmão do poeta José Régio)
publicado às 07:30
Maria João Brito de Sousa
Ontem a serra estava tão bonita!
Da varanda onde estive, a pude ver
E por sobre ela uma pequena fita
Azul, como se enfeite de mulher,
Realçava-lhe a cor viva e bendita
Que de verde a cobriu, logo ao nascer
E, mantendo-se viva, lhe credita
A justa fama de a mais bela ser.
Mil vezes nesses verdes me perdi,
Mil vezes me encontrei nessa memória
Quando, em chegando a noite, não mais vi
No seu verde contorno, a sua glória;
Não a podendo ver, relato aqui
Aquilo que senti, mas nunca a história...
Maria João Brito de Sousa – 28.08.2017 – 10.36h
publicado às 10:50
Maria João Brito de Sousa
À pressa, sempre à pressa, tropeçou
No último degrau duma escadinha
E, na pressa de erguer-se, derramou
Da velha mala, tudo o que continha.
Foi ainda com pressa que a apanhou
E apressou-se mais porque a noitinha
Caía sobre a esperança com que ousou
Descer a escada à pressa, assim, sozinha.
Passou-se o vinte e quatro e não chegou
A grandemente ansiada esmolazinha;
A conta por pagar, não a pagou,
Cigarros, emprestou-lhos a vizinha...
Repete-se, hoje, a angústia que a levou
A correr, estando quase entrevadinha.
Maria João Brito de Sousa – 25.08.2017 – 11.16h
publicado às 00:00
Maria João Brito de Sousa
Tentando refazer todos os passos
Da minha venturosa desventura,
Dei conta de me serem muito escassos
Os meios de encetar essa procura
Porquanto me faltavam força e braços...
Faltava-me, afinal, musculatura
E, de tabaco, tinha só dois maços
Que é coisa que, bem sabem, pouco dura...
Desisto da demanda! Se há mil espaços
Na nova dimensão de outra lonjura,
Porque hei-de desgastar-me em tais cansaços,
Porque hei-de submeter-me a tal tortura?
Deixo o meu Mar suspenso entre os sargaços
E, à Terra, engendro-lhe outra curvatura!
Maria João Brito de Sousa – 24.08.2017 – 11.28h
(Reservados os direitos de autor)
publicado às 23:32
Maria João Brito de Sousa
A cada vinte e quatro, por instantes,
Enquanto subo e desço a escadaria,
Sinto o mesmo alvoroço dos amantes
E a extrema apreensão duma agonia,
Quando a seguir, com gestos hesitantes,
Tento pagar as contas que devia
Ter já saldado umas semanas antes
Do sempre ansiado e mencionado dia,
Por isso, as minhas náuseas são constantes;
Nunca a debilidade, a distonia,
Ou mesmo outras angústias semelhantes,
Me fariam sentir tanta euforia,
Seguida por horror, ao ver gigantes
Nas contas dos moinhos de energia...
Maria João Brito de Sousa -23.08.2017 – 14.28h
(Reservados os direitos de autor)
Imagem retirada da net, via Google
publicado às 07:00
Maria João Brito de Sousa
QUERIA SER POEMA
Queria ser poema, não poeta
Poema que espalhasse afecto e amor
Por todos os recantos do planeta
Onde se dita a guerra, se faz dor
Poema que escorresse da caneta
De qualquer presidente ou ditador
Que ao assinar metesse na gaveta
Tal decreto com fim exterminador
Queria ser poema no luar
Para poder à noite iluminar
Quem nada tendo dorme na calçada
Poema só com versos de amizade
De alegria, prazer felicidade
Lidos em cada triste madrugada
MEA
14/08/2017
UNOS, AINDA QUE SÓS
“Queria ser poema, não poeta”,
E tantas, tantas vezes o sonhei
Que acabou por ser essa a minha meta
Quando, ao último verso, enfim cheguei.
“Poema que escorresse da caneta”
Como sangue da carne em que o gerei,
Que me deixasse grávida e repleta
Do tanto que perdi quando me dei.
“Queria ser poema no luar”,
Ou verso apenas, sob a luz solar,
Mas sempre sob um sol de todos nós.
“Poema só com versos de amizade”
Que nunca nos negasse a liberdade
De sermos unos, mesmo estando sós.
Maria João Brito de Sousa – 23.08.2017 – 10.21h
(Imagem retirada do Google)
publicado às 13:41
Maria João Brito de Sousa
I
Um vinho tinto em vidro transparente,
Um caldo verde espesso, fumegando,
Um pão que sabe e cheira ao gesto quente
Das mãos que o vão partindo e partilhando.
II
Um copo que se entorna, de repente,
A sopa na terrina, já esfriando,
Brotam palavras da fornalha ardente
Dos gestos doces que as vão convocando.
III
Dois corpos que se enlaçam, se dobrando
Sobre uma mesa que já vai sobrando,
Matam a fome que se torna urgente,
Esquecidos, ambos, de que estão jantando,
Porque esse abraço foi-se transformando
No mais apetecido ingrediente.
Maria João Brito de Sousa – 21.08.2017 – 16.26h
(Resevados os direitos de autor)
publicado às 09:50
Maria João Brito de Sousa
UM BARQUITO NO TEJO
Lá ao longe nas águas cor de prata
Onde o sol se refresca ao fim do dia
E onde o Tejo convida uma fragata
Vai um barquito, só...sem companhia
Vai sereno na sua passeata
Deslizando em reflexos de poesia
Sob a ponte onde a água é mais pacata
Quando a tarde é já cor de fantasia
Parece quedo ali ao meio do rio...
Somente o balouçar lento e macio
Denota que ele vai a navegar
De vela içada segue o seu destino
E ao leme leva um sonho de menino
Feito de sol de brisas e de mar
MEA 20/08/2017
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JANGADA DE SONHOS
“Lá ao longe, nas águas cor de prata”,
Flutua uma jangada aventureira
Humilde, porque toda se recata,
Sem âncora, sem rumo e sem fronteira.
“Vai sereno/a na sua passeata”,
Ao sabor das marés voga ligeira;
Só nas cristas das ondas se retrata
E só no azul do céu se espelha inteira.
“Parece quedo/a, ali, ao meio do rio”,
Onde não passa mais nenhum navio;
O mar que a espera é seu, de mais ninguém!
“De vela içada segue o seu destino”
Deixando atrás de si o rasto fino
Do sonho com que ousou deixar Belém.
Maria João Brito de Sousa – 21.08.2017 – 10.44h
publicado às 10:57
Maria João Brito de Sousa
(Soneto de métrica imperfeita/irregular)
Porque chegaste desequilibrado,
Porque partiste sem te equilibrar
E, tropeçando em teu passo apressado,
Me convidaste sem me convidar?
Porque me deste um beijo descuidado,
Porque me amaste sem nunca me amar,
Porque deixaste este cheirinho a fado
E bossa-nova, quase a combinar?
Se foi convite, chegou-me atrasado,
Se foi adeus, esqueceu-se de acenar
E foi-se embora quase envergonhado
Para não ter de ouvir-me perguntar;
Como é que pode alguém, sem ter voltado,
Dar-me esta sensação de por cá estar?
Maria João Brito de Sousa – 19.08.2017 – 08.31h
publicado às 09:00
Maria João Brito de Sousa
SONETO
Por que me descobriste no abandono Com que tortura me arrancaste um beijo Por que me incendiaste de desejo Quando eu estava bem, morta de sono? Com que mentira abriste meu segredo De que romance antigo me roubaste Com que raio de luz me iluminaste Quando eu estava bem, morta de medo? Por que não me deixaste adormecida E me indicaste o mar, com que navio E me deixaste só, com que saída? Por que desceste ao meu porão sombrio Com que direito me ensinaste a vida Quando eu estava bem, morta de frio?
Chico Buarque
SONETO II
Porque vieste assim, louco e sem dono,
Falar-me de mil coisas nunca ouvidas
E me afagaste com mãos decididas,
“Quando eu estava bem, morta de sono?”
Porque bateste à porta, manhã cedo,
E me ofuscaste em luz, na luz que entrava
Por essa mesma porta que eu fechava,
“Quando eu estava bem, morta de medo?”
Porque é que me quiseste dividida,
Se inteiro preencheste este meu rio
“E me deixaste só, com que saída?”
Porque foi que sorveste cada fio
Duma água que jamais fora bebida,
“Quando eu estava bem, morta de frio?”
Maria João Brito de Sousa – 18.08.2017 – 19.41h
(Neste segundo soneto, todos os versos que se encontram entre aspas são da autoria de Chico Buarque)
"Menina Sentada" - Portinari
publicado às 07:33