O VESTIDO VERMELHO
Era um amor platónico, pensava ele. Fez um tremendo esforço para entreabrir os olhos, já baços, que uma guinada mais forte o obrigara a cerrar. Era imenso, insustentável, mas sempre fora um amor platónico. Nunca soubera amar assim outra qualquer.
A vida, inteira, passava-lhe diante dos olhos como um filme muito, muito antigo… ela andava sempre de calças e sorria muito. Ele sentava-se a seu lado, no sofá de napa, vigiando-lhe o sono, sempre que ela ficava, madrugada afora, à espera do marido invariavelmente afadigado em lides político-partidárias. Nunca gostara muito dele. Considerava-o um tanto ou quanto negligente no cumprimento dos seus deveres de macho protector, mas nunca lhe passara pela cabeça senti-lo como rival. Era, efectivamente, um amor insustentavelmente platónico.
Uma dor excruciante fê-lo cerrar, novamente, os olhos amendoados, cor de mel. Gemeu baixinho.
Nunca se revoltara contra a ordem natural das coisas e sabia que o fim estava a chegar. Intuía-o por ali, muito pertinho, rondando o seu corpo velho e imprestável, mas qualquer coisa o prendia ainda ao lado de cá da vida.
A imagem dela surgiu, novamente, no derradeiro filme que o seu cérebro projectava, estranhamente alheio à sua vontade… ela sorridente. Ela a cantar, na cozinha, nas mil e uma lides de dona de casa. Ela ainda menina. Ela ainda a necessitar de protecção. Como poderia partir e deixá-la assim, ingénua, indefesa?
Abriu, ainda uma vez, os olhos. Ela estava ali, diante dele, estranhamente vestida de vermelho. Um vestido longo e decotado que lhe pareceu absurdamente desligado dela. E não sorria. Adivinhou-lhe mesmo duas lágrimas rolando pela face, em câmara lenta. Viu-a baixar-se, descendo em direcção a ele e sentiu que o acariciava longamente.
Faltava, ainda, qualquer coisa realmente indefinível para que pudesse partir. Fixou nela os tais olhos de mel onde a última centelha de vida recusava extinguir-se. Sempre entendera as palavras que ela lhe dirigia naquela outra língua modulada em curtíssimos sons cantantes, embora todos troçassem dos longos monólogos que a mulher costumava dirigir-lhe.
Foi então que ela falou:
- Se é por mim… se é por mim que ainda vives, apesar de tanta dor…
Ele bebia-lhe sofregamente as palavras embargadas por soluços.
- Se é por mim, - continuava ela com uma voz que parecia mais e mais distante - não sofras mais. Vai. Liberta-te. Continuarás comigo para além da morte.
Ele tentou ainda emitir um latido em sinal de compreensão, como sempre fizera. Não o conseguiu.
A vida foi-se-lhe apagando suavemente como a imagem da sua amiga. Da sua amiga súbita e estranhamente adulta. Súbita e estranhamente vestida de vermelho.
Um conto, para variar...